sexta-feira, 17 de fevereiro de 2006

«O peso dos instintos e das multidões»

«Fecho os olhos e ainda vejo aquela mulher que poderia ser minha tia-avó a calcorrear a sala do pub com mamas postiças e piadas brejeiras. Ainda sinto a euforia das vozes femininas alcoolicamente alteradas, reagindo ao fogo ateado por um stripper vestido de malabarista. E não esqueço o rosto da rapariga a quem nos tempos de liceu chamávamos rata de sacristia, perfeitamente deslumbrada perante o erotismo do espectáculo que os seus olhos viam.

Já se passaram dois anos sobre o dia em que vivi este cenário, mas ainda sinto a vergonha que experimentei ao perceber que aquele jantar era tudo menos um encontro de Amigas como o que eu esperava.

Alguns amigos já me tinham avisado que as mulheres ficavam loucas nesse dia, mas nunca pensei que fosse efectivamente assim. Na altura, estava fora das ilhas há nove anos e ansiava com saudade retomar a tradição de outros tempos. Só não esperava que esse dia parecesse um pesadelo de mau gosto.

Hoje, à luz da distância temporal e espacial, consigo finalmente escrever sobre o dia em que percebi que a tradição da Quinta-feira de Amigas havia sido mercantilizada da pior forma possível.

Poderá parecer caricato, mas a verdade é que senti mais o valor da amizade comemorando a tradição num qualquer recanto de Lisboa do que nos Açores, onde a partilha da intimidade com as amigas do peito deu lugar à partilha dos excessos com a multidão; onde as brincadeiras carnavalescas tradicionais deram lugar a uma curtição desmedida da noite; onde as amigas que passam o ano sem sair de casa se vingam dando asas à loucura insana, qual despedida de uma vida que não voltarão a viver.

Chamem-me conservadora se quiserem, mas ver mães e até avós perder a noção da realidade foi mais do que o meu coração conseguia aguentar. Decididamente, não fui feita para multidões e não gosto do que as multidões fazem aos homens e às mulheres de todos os dias.

Perante uma multidão, basta um click para que a euforia tome conta da massa e o descontrolo aconteça. A vivência açoriana do Dia das Amigas está a ser disso exemplo, mas não é o único. Os incidentes provocados na sequência da publicação de cartoons de Maomé ou os distúrbios que abalaram recentemente Paris podem entrar na mesma categoria.

Sei que é Carnaval e é suposto ninguém levar a mal, mas fiquei chocada com o comportamento das Amigas que festejam o seu dia trocando a amizade pela euforia de enlouquecerem sem que ninguém as chame à razão. Posso dizer mesmo que, apesar de ser católica convicta, fiquei mais chocada com o que vi entre as mulheres do que com as caricaturas de Deus que agora varrem a Internet em retaliação às de Maomé.

Ao contrário do que possa pensar quem ler estas linhas, a fé não me fez perder o sentido de humor. E conheço bem o valor da tolerância, tão fundamental quanto distinguir entre o bem e o mal. Mas por mais tolerante que seja, não consigo digerir bem certos excessos. Não percebo o porquê de se comemorar o Dia das Amigas com uma sessão de striptease, e ainda menos a necessidade de responder a uma caricatura ofensiva com actos de destruição e violência.

Talvez o mulherio pareça perder a noção do seu poder e use a loucura como forma de escape a uma vida demasiado reprimida. Talvez a multidão violenta descarregue a sua frustação naqueles que secretamente inveja. Talvez ambos sejam demasiado fracos para fugir ao peso da multidão. Mas nem uns nem outros podem dizer que não sabiam o que faziam ou que não tiveram noção do alcance dos seus actos.

Olho para estes acontecimentos tão distantes entre si, no espaço e nos protagonistas, com uma sombra no coração. Sinto que a natureza humana está muito longe da maturidade que o avanço das sociedades deveria ter permitido alcançar. Vejo que os instintos ainda são muito mais fortes do que a razão. E que, tal como nos animais, são demasiado fáceis de atiçar.»

Lídia Bulcão, in Jornal dos Açores de 13/02/2006

4 comentários:

Anónimo disse...

A grande brava coloca o dedo na ferida! Conseguiste mostrar de uma forma muito próxima da realidade o que se passa na LOUCA noite das amigas.
Chego à conclusão de que não é o dia das amigas, mas sim o dia da libertação...

RD disse...

Bem, não o poderias ter escrito melhor e parabéns pela analogia com as caricaturas.
Cara amiga, para mostrar concórdia, não por palavras, mas pela minha acção, te digo que no dia das amigas fiquei em casa.
Não estava muito virada para jantaradas com amigas de amigas de amigas que nada me dizem. De facto tornou-se um dia forçado e sem qualquer essência.
Tenho pena que assim seja porque poderia ser um dia diferente, um dia em que mais do que mensagens repetidas e feitas por outras pessoas, fosse um dia em que reforçassemos elos (se é que seja necessário).
Eu fi-lo, quietinha em casa e sem show off's e foi um bom dia.
O teu último parágrafo faz todo o sentido e bom seria se muitos mais pensassem assim.
Deixa-me acrescentar apenas, que este dia não é apenas o dia das amigas, mas sim o dia de todos aqueles (homens e mulheres) que "pareça perder a noção do seu poder e use a loucura como forma de escape a uma vida demasiado reprimida". (converta-se ao plural)

Para arrematar, será este um dia, tal como no jantar de Natal (por exemplo), que se come demais apenas porque se pensa que se pode? ;)

Um grande beijinho.

C-Angel disse...

Sem grandes filosofias nem lições de moral o dia das amigas tornou-se num dia em que as donas de casa desesperadas saem é rua, são libertadas pelos maridos e dão o seu grito e ipiranga!!!

O mal desta gente não são os excessos, pelo contrario, são a falta deles!

É por isso que aproveitam de forma nojenta esse dia para andar a fazerem figuras tristes como aquela, elbravinha, que vimos alguns anos atras - de uma senhora de certa idade andar a passear em pleno restaurante um dildo de mão em mão!!!

Podem chamar-me de intolerante mas ainda acho que certas coisas merecem estar na gaveta de cima do quarto de cama!!!!!:)

Caiê disse...

Por instinto, sou contra as multidões...